A partir das ideias do filósofo, educador e autor americano Mortimer Adler (1902-2001), conforme expressas em "Como Ler Livros" (1940, 1972), esta Análise de Obra oferece uma abordagem analítica e sintópica dos níveis de leitura para examinar "A Constituinte Burguesa" de Emmanuel Joseph Sieyès.
Na obra “A Constituinte Burguesa” (Qu’est-ce que Le Tiers État?) publicada em 1789, por Emmanuel Joseph Sieyès, trata-se de uma crítica em relação ao momento de transição vivenciado pela França, mais especificamente, precede a Revolução Francesa.
O país estava enfrentando uma grande crise econômica e insatisfação social e política. No intuito de solucionar a crise econômica em 1787 o rei Luís XVI convocou a Assembléia dos Notáveis, composta por aristocratas, nobres e eclesiásticos, a fim de formularem reformas, mas as três ordens sociais foram irredutíveis em dispor de seus privilégios.
Em 1789, foi convocada uma Assembléia consultiva formada pelos Estados Gerais, com representantes das ordens sociais privilegiadas que buscavam por reformas que seriam capazes de por um fim as crises do Estado. A expectativa criada a partir da convocação de tal Assembléia foi um dos grandes motivos que levaram Sieyès escrever sua obra.
A ideia central do livro é a defesa dos interesses políticos e econômicos da burguesia francesa, argumentando que o Terceiro Estado, apesar de ser o mais numeroso e produtivo, era injustamente explorado e excluído do poder político pelo clero e pela nobreza.
Sieyès propõe uma reforma política que dê ao Terceiro Estado, especialmente à burguesia, maior representação e influência na governança da França, por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita que elaboraria uma constituição limitando os poderes do rei e abolindo os privilégios das classes dominantes.
Essa ideia foi fundamental para mobilizar o Terceiro Estado a se rebelar contra a estrutura política do Antigo Regime e lutar por uma monarquia constitucional durante a Revolução Francesa, pavimentando o caminho para a ascensão da burguesia como classe dominante na França pós-revolucionária.
Este Artigo apresenta as ideias principais com informações relevantes e análise crítica, mas não substitui a leitura detalhada do livro, porém serve para despertar o leitor para que faça sua própria incursão e útil reflexão.
Em “A Constituinte Burguesa”, o autor se mostra contrário aos abusos do Primeiro e Segundo Estados sobre o Terceiro Estado. O Primeiro e Segundo Estados eram formados pela nobreza e clero, os quais eram isentos do pagamento de tributos, detinham o direito e cobrá-los e ainda possuíam a maior parte dos direitos políticos, enquanto que o Terceiro Estado era composto por burgueses, trabalhadores urbanos e camponeses.
Dividida em sete capítulos, Sieyès utiliza-se dos três primeiros para descrever a situação vivenciada pelo Terceiro Estado na época. No primeiro, o autor busca definir o Terceiro Estado e sua importância para a época, concluindo que sua formação abrange tudo aquilo que seria necessário para se formar uma nação, daí considerá-lo uma nação completa à parte, um “tudo”. Isto porque, na composição do Terceiro Estado havia tudo aquilo que era imprescindível para a sobrevivência da sociedade, era ele quem mantinha as ordens privilegiadas, enquanto que elas permaneciam ociosas em relação ao trabalho e funções administrativas, tornando-se ordens estranhas à nação, especialmente por suas prerrogativas civis e políticas e ocupação dos cargos lucrativos e honrosos.
O segundo capítulo critica a falta de representatividade do Terceiro Estado nos Estados Gerais, afirmando o autor que os direitos políticos de tal ordem social são nulos, daí o Terceiro Estado ser um “nada”. O que havia era uma atrofia estatal ocasionada pelo monopólio dos cargos públicos ocupados pelas classes privilegiadas, ainda que o Terceiro Estado fosse o responsável pelo sustento da sociedade e, por esta razão, detivesse o direito de participar das decisões políticas do país.
No terceiro capítulo, Sieyès apresenta as reivindicações do Terceiro Estado em busca de sua participação na política francesa, razão pela qual esta classe pede para “ser alguma coisa”. Neste momento da obra, o autor faz uma análise das petições elaboradas contendo reivindicações do Terceiro Estado para o governo.
A primeira petição argumentava que os representantes do Terceiro Estado deveriam pertencer ao Terceiro Estado, os quais compartilhariam uma mesma visão de mundo e interesses, sendo capazes de defendê-lo perante as ordens privilegiadas. Na intenção de ampliar o âmbito de influência do Terceiro Estado nos assuntos políticos, a segunda petição, em complemento a primeira, propunha que os deputados do Terceiro Estado fossem em mesma quantidade dos da nobreza e do clero, e a terceira petição requeria que a votação ocorresse por cabeças e não por ordens, como vinha ocorrendo.
O capítulo quatro traz um relato daquilo que o Primeiro e Segundo Estados propuseram fazer para solucionar o problema da representatividade do Terceiro Estado. Abrange, em verdade, as promessas do governo e das ordens privilegiadas para auxiliar o Terceiro Estado alcançar maior participação política. No entanto, para Sieyès, tais propostas eram insuficientes e apenas uma forma de acalmar os ânimos do Terceiro Estado no momento.
Por fim, os três últimos capítulos tratam das proposições do autor quanto aos problemas do Terceiro Estado, dos postulados de Sieyès em relação ao poder constituinte, como forma de preencher as lacunas que não foram alcançadas pelas petições. O autor defende que o Terceiro Estado deveria ser a fonte da soberania e do direito, devido constituir a plenitude da nação, sendo que a representação política deveria ser o principal direito político a ser conquistado por esta classe social, já que permitiria que a vontade da nação fosse praticada.
Neste momento da obra, Sieyès ressalta que para a vontade da nação ganhar espaço haveria a necessidade de se promulgar uma Constituição pelos próprios representantes do Terceiro Estado, os quais compunham a nação francesa, para que o Estado pudesse reencontrar sua identidade nacional.
Ainda, o autor expressa seu entendimento de que a Constituição deve ser elaborada a partir de um poder constituinte e não um poder já constituído e, somente pela Assembléia Nacional é que poderiam ser criadas novas leis fundamentais para a convivência harmônica e justa da sociedade.
1. A sociedade francesa estava dividida em três estados: nobreza, clero e o Terceiro Estado, que englobava a burguesia e o povo comum.
2. O Terceiro Estado era o mais numeroso e produtivo, sustentando os privilégios da nobreza e do clero. Sieyès defende que ele deveria ter maior representação política.
3. Os privilégios da nobreza e do clero eram injustos e onerosos para a nação. Sieyès propõe a abolição desses privilégios.
4. A soberania reside na nação, não no rei. A nação tem o direito de estabelecer um governo e uma constituição.
5. É necessária uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita pelo povo, para elaborar uma constituição que limite os poderes do rei.
6. Sieyès defende o voto censitário (baseado em propriedade e renda) e a representação da burguesia, não da população em geral.
7. A burguesia é apresentada como a elite esclarecida que deve liderar a regeneração da nação francesa.
8. Sieyès rejeita a democracia direta e defende um governo representativo, dominado pela burguesia.
9. Ele propõe a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o rei subordinado à lei e à constituição.
10. O panfleto de Sieyès foi influente para mobilizar o Terceiro Estado a romper com a estrutura política do Antigo Regime e estabelecer uma monarquia constitucional na Revolução Francesa.
Em suma, Sieyès faz uma defesa contundente dos interesses da burguesia, propondo reformas políticas que abrissem caminho para seu protagonismo, em detrimento dos privilégios aristocráticos, mas mantendo a exclusão política das camadas populares.
Emmanuel Joseph Sieyès, em "A Constituinte Burguesa", e Jean-Jacques Rousseau, em "O Contrato Social", abordam a questão da soberania e da legitimidade do poder político, mas chegam a conclusões distintas.
Rousseau defende a soberania popular e a democracia direta, com todos os cidadãos participando igualmente da elaboração das leis. Já Sieyès argumenta que a soberania reside na nação, especialmente na burguesia, e defende um sistema representativo com voto censitário.
Enquanto Rousseau enfatiza a igualdade política e a participação popular, Sieyès privilegia a representação da burguesia e a limitação da soberania popular. Ambos, porém, rejeitam a legitimidade do poder absoluto do rei e dos privilégios hereditários da nobreza e do clero.
Essa comparação evidencia as diferentes visões sobre a organização política da sociedade entre os pensadores iluministas do século XVIII, refletindo os interesses de diferentes segmentos sociais: Rousseau expressa um ideal mais democrático e igualitário, enquanto Sieyès representa os anseios da burguesia por maior poder político e econômico.
Emmanuel Joseph Sieyès, em "A Constituinte Burguesa", e John Locke, em "Dois Tratados Sobre o Governo", defendem a soberania popular e rejeitam o direito divino dos reis, mas diferem quanto à participação popular no governo.
Locke defende um governo representativo e a separação de poderes para proteger direitos naturais, refletindo interesses da burguesia ascendente na Inglaterra do século XVII.
Sieyès argumenta que o direito ao voto deve ser reservado aos membros mais esclarecidos e produtivos, especialmente a burguesia, vendo a participação política como um direito conquistado pela contribuição para a nação.
Locke enfatiza a proteção dos direitos individuais, enquanto Sieyès se concentra nos interesses da burguesia. Ambos contribuíram para o pensamento liberal e para as revoluções burguesas na Inglaterra (século XVII) e na França (século XVIII).
Emmmanuel Joseph Sieyès nasceu em Fréjus, em 03/05/1748, seu pai era um diretor dos Correios. Em 1787 tornou-se vigário do bispo Chartres.
Em Paris, foi eleito deputado pelo Terceiro Estado e propôs a Constituição e uma Assembléia Nacional. Na data de 20/06/1789 redige o juramento do Jeu de Paume.
Nos anos de 1791, 1795 e 1799 propõe alguns projetos constitucionais, os quais foram considerados muito complicados para serem colocados em prática.
O autor foi deputado da Sarthe na Convenção e favorável a execução do rei Luís XVI, bem como exerceu o cargo de deputado durante o Diretório do Conselho dos Quinhentos. Em 1799 foi diretor e junto de Napoleão Bonaparte fomentou o golpe de Estado do 18 Brumário.
Ainda, foi Cônsul provisório e participou da Constituição do ano VIII, a qual foi modificada por Bonaparte, por entender ser inaplicável.
Em 1800 foi nomeado senador e em 1803 tornou-se membro da Academia francesa. Entre os anos de 1816 a 1830 permaneceu exilado em Bruxelas, por causar conflitos com o regime da época. Vem a óbito em 20/06/1836 em Paris.
A obra de Sieyès gerou grande contribuição para se consolidar as concretas propostas de mudanças da sociedade, da política e também jurídicas, que se demonstraram revolucionárias no contexto histórico vivenciado pelo Estado francês.
Durante seu livro, o autor demonstra-se um ativista político, traçando caminhos e propostas para que o Terceiro Estado alcançasse de uma vez por todas seus merecidos direitos. Cada capítulo de “A Constituinte Burguesa” representa um degrau a ser a ser escalado pelo Terceiro Estado para que seja equiparado com as ordens privilegiados do clero e da nobreza.
Em "A Constituinte Burguesa", Emmanuel Joseph Sieyès apresenta uma contundente crítica à estrutura social e política da França do Antigo Regime, denunciando a injustiça dos privilégios desfrutados pela nobreza e pelo clero em detrimento do Terceiro Estado, que constituía a maior parte da nação e sustentava a economia do país. Ao defender a soberania nacional, a representação política da burguesia e a criação de uma Assembleia Nacional Constituinte para elaborar uma constituição que limitasse os poderes do rei, Sieyès lançou as bases ideológicas para a Revolução Francesa.
Seu pensamento não apenas mobilizou o Terceiro Estado contra a ordem estabelecida, mas também pavimentou o caminho para a ascensão da burguesia como classe dominante na França pós-revolucionária. Embora "A Constituinte Burguesa" advogasse principalmente pelos interesses da burguesia, excluindo as camadas populares, sua influência foi decisiva para o desmantelamento do Antigo Regime e para a construção de uma nova ordem política e social na França, baseada nos princípios de liberdade, igualdade e soberania nacional, ainda que esses ideais tenham sido aplicados de forma limitada e seletiva na prática.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014
A referida análise de obra foi apresentada em 2015 por ocasião do doutoramento em Ciência Jurídica na UNIVALI, Capes 6, pelo Prof Dr Oscar F. Alves Jr e Profª Drª Andréia Almeida Alves, dupla sorteada pelo professor do módulo Dr Paulo Márcio Cruz.